Vinte anos depois, o caso Avestruz Master ainda reverbera como a mais exótica das pirâmides financeiras do Brasil e trauma para centenas de goianos
20 de novembro de 2025 às 08:53
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Especial
No começo dos anos 2000, Goiânia virou capital de um milagre improvável. Em outdoors, feiras e salas de hotel, prometia-se o futuro em plumas, couro de luxo e filés magros. A Avestruz Master garantia que quem comprasse filhotes teria recompra assegurada a preço maior. Os contratos pareciam simples; os lucros, rápidos. O Brasil, ainda de ressaca da quebradeira da Boi Gordo, se deixou seduzir por um bicho africano que mal conhecia. O que se viu depois foi a anatomia de um golpe com sotaque goiano e alcance nacional.
Pelo menos 40 mil pessoas entraram no negócio entre 2003 e 2005, grande parte em Goiás. O Ministério Público Federal classificou o sistema como pirâmide financeira: o dinheiro que remunerava velhos contratos vinha do ingresso de novos investidores. Quando a porta fechou, o tombo superou R$ 1 bilhão, segundo as ações penais. A Justiça bloqueou contas, determinou o sequestro de fazendas e expediu mandados de prisão. Ficou a imagem de gente invadindo currais para levar suas aves como quem corre ao banco no dia do pânico.
Na superfície, tudo soava profissional. Havia linguagem de “agronegócio do futuro”, farta publicidade e contratos impressos como as melhores promessas de uma praça financeira. Em 2004, segundo levantamentos reproduzidos pela imprensa e por análises posteriores, a companhia gastou milhões em propaganda e quase nada em ração. Era a inversão perfeita de prioridades num negócio que dizia criar animais para abate; na prática, nenhum avestruz foi abatido durante a operação. “Mercado de vento”, chamaria o MPF num dossiê interno.
A cronologia do colapso é cinematográfica. Em 4 de novembro de 2005, a Avestruz Master paralisou as atividades e prometeu voltar. Não voltou. Investidores, apavorados, foram às fazendas. Naquela semana, a Justiça Federal em Goiás expediu mandados de prisão contra dirigentes do grupo, e a Polícia Federal ampliou a lista de crimes sob investigação, da lavagem de dinheiro aos delitos contra a economia popular. “Esta sexta-feira foi marcada pelo desespero”, registrou uma nota do Globo Online, reproduzida pela Gazeta do Povo, com a voz de um eletrotécnico que buscava respostas no Ministério Público. O caso já tomava Brasília e os telejornais.
O rosto público do império era o empresário Jerson Maciel da Silva. A ele e aos familiares foram associados braços do conglomerado, como a Struthio Master. Jerson morreu em 2008, e a massa falida seguiu seu curso em Goiás. A roda judicial foi lenta, mas girou: em 2010, a Justiça Federal condenou dois filhos e um genro do fundador; anos depois, o Superior Tribunal de Justiça reconheceria dano moral coletivo e ampliaria a responsabilização de sócios no âmbito cível. Em 2019, ex-diretores começaram a cumprir pena em regime semiaberto, numa tarde em que a memória do escândalo voltou às manchetes.
Os números do descompasso ajudam a contar a fábula. Relatos de mercado e relatórios citados pela imprensa apontaram que, enquanto a empresa dizia ter comercializado centenas de milhares de animais, o plantel real era uma fração disso. A média mensal de recursos que transitava pelas contas, em 2003 e 2004, chegava a dezenas de milhões de reais, com custos irrisórios para a criação. Nenhum frigorífico recebeu a carne prometida. Era o velho princípio de Ponzi com plumagem exótica.
A imprensa ouviu histórias de fé e ruína. “Investi há mais de um ano”, disse, em 2005, o eletrotécnico Elington Sachi da Silva, na reportagem citada acima, à procura de notícias no MP-GO. Em Brasília, a Câmara ecoava as filas em Goiânia e cobrava respostas, enquanto a empresa, em compromissos firmados no Procon, prometia negociar com credores e, “havendo caixa”, recomprar aves; não havendo, entregar “o que for possível” em bens e animais. Era o retrato da confiança quebrada.
A memória do caso também se consolidou fora dos cadernos de economia. Anos depois, podcasts investigativos reconstruíram cenas de cavalaria em pastos e um ovo gigante no topo de um prédio; portais regionais e nacionais voltaram ao tema quando sentenças foram mantidas ou quando antigos executivos foram presos. A história virou espécie de parábola sobre credulidade, regulação frouxa e euforia de promessas fáceis.
Se há uma lição, ela cabe nesta linha: quando a taxa prometida não conversa com o ciclo produtivo, o lucro vem de outro lugar. No caso Avestruz Master, veio do bolso de quem chegou depois. A conta só fechava enquanto a roda da captação girava. Quando parou, ficou o silêncio das baias, a poeira das estradas de terra e um contencioso que atravessou uma década e meia para, no fim, reconhecer o dano coletivo e responsabilizar pessoas físicas. Em Goiás, a palavra “avestruz” deixou de nomear um animal para batizar um trauma que vinte anos depois, parece ainda não ter sido superado.
Domingos Ketelbey
É repórter, colunista e apresentador. Conecta os bastidores do poder, cultura e cotidiano na cobertura jornalística
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